sábado, 4 de maio de 2019

Porque eu sonho

Gostava muito de um filme canadense chamado Leolo, um filme de Jean Claude Louson. Ajudou-me muito a encontrar forças e reunir coragem para buscar a verdade e finalmente encontrar a Verdade Revelada. É muito belo, mas não é uma finalidade, é (quanto as fases, adolescência rebelde, por exemplo)foi no meu caso também uma etapa, não o objetivo final. Agradeço a autora do seguinte artigo que cito seu início de trabalho teórico: Psicol. USP vol.9 n.2 São Paulo 1998 http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65641998000200005 LEÔLO, LEOLÔ: O TRABALHO E O SONHO Maria Helena Souza Patto Instituto de Psicologia - USP Contra leituras que o reduzem a prontuário psicológico que documenta um caso de psicopatologia familiar, o filme canadense Léolo é reinterpretado. Resgatam-se não só os seus aspectos sócio-políticos, como, acima de tudo, a dimensão formal, sem a qual é impossível entendê-lo como obra de arte. Descritores: Cinema. Família. Pobreza. Trabalho. Imaginação. Bachelard, Gaston, 1884-1962. Weil, Simone, 1909-1943. Concorrente oficial em Cannes, Léolo foi saudado pela crítica estrangeira em 1992 como um dos filmes mais originais já realizados no Canadá. De fato, o diretor Jean-Claude Lauzon, pouco conhecido no mundo do cinema até então, havia criado uma obra de arte ao narrar a história de um menino e sua família num bairro pobre de Montreal. A um olhar rotineiro, o enredo parece simples: uma loucura hereditária que vem do avô e passa pelo pai atinge inexorável as quatro crianças da família. O caçula (Léolo) tenta escapar, refugiando-se na fantasia. Depois de um sonho no qual sua mãe é fertilizada por um tomate portador do esperma de um camponês da Sicília, Léolo nega a nacionalidade franco-canadense e se declara italiano: sempre que chamado de Leolô Lauzon, exige que o chamem de Leôlo Lozone e sonha com a Itália, personificada na vizinha Bianca, filha de imigrantes italianos. Ele lê, observa e registra por escrito a vida da família: seus hábitos (entre os quais, a preocupação com o funcionamento intestinal, centro da atenção de uma leitura clínica), seu cotidiano, o índole de cada um, as internações do avô, do pai e dos irmãos e as visitas que lhes faz, em companhia da mãe, nas alas psiquiátricas dos hospitais da cidade. Léolo parece preservado pelo devaneio e pela escrita, mas finalmente capitula, aparentemente cumprindo um destino que já estava escrito em seus gens ou, na melhor das hipóteses, na psicopatologia da dinâmica familiar. Muito do que se disse sobre este filme no Brasil convergiu para a usual redução psicológica: críticos e clínicos tomaram como centro da trama a insanidade dos pais e suas conseqüências maléficas sobre a saúde mental dos filhos. Num registro naturalista, fizeram dele prontuário, estudo de caso exemplar no qual se encontrariam todos os ingredientes da produção da loucura no círculo fechado de uma família insana. Para ver um filme é preciso ir além do que os olhos já sabem e deixar-se surpreender pelas imagens, que sempre transcendem a elementaridade da lógica que preside concepções científicas abstratas e limitadas da condição humana. Contra a interpretação psicanalítica de O Silêncio, Susan Sontag adverte: "os que procuram uma interpretação freudiana do tanque expressam apenas sua incapacidade de responder ao que está efetivamente na tela." (Sontag, 1987a, p.18-9).1 Como tantos outros filmes tidos erroneamente como tal, Léolo não é um filme psicológico: como Sontag (1987b, p.137) ressalta a respeito de Persona - objeto ele também de freqüentes leituras psicologizantes -, as alusões políticas são patentes Antes mesmo do término dos créditos iniciais, três cenas trazem as chaves para a compreensão da história. Na primeira, a câmera passeia e mostra um sobrado deteriorado de 1909, casa de cômodos que abriga várias famílias, entre as quais a família Lauzon; em off, o narrador (Léolo adulto) revela que o menino que brinca em frente à casa não se considera canadense. Na segunda, uma máquina de olhos de fogo gira como moenda no interior avermelhado de uma fundição e expele uma língua de ferro incandescente; neste cenário do inferno, um operário suado, sujo, melancólico, carrega, bovino, um fardo às costas. Léolo nega que ele seja seu pai, "porque ele é louco, e eu não sou." Na terceira, o espectador é levado a um bonito vale da Sicília, onde camponeses colhem tomates. Um deles ejacula obre uma caixa de pomodori, verdadeiros frutos da terra italiana, "para dar vida aos tomates que vão para a América", alusão clara à fertilização do continente americano pela imigração italiana na virada do século. Um bordão acompanha estas cenas e se repetirá ao longo do filme: "Porque eu sonho, eu não o sou" - não sou franco-canadense nem filho de um louco que se deixa matar. Esta será a palavra-de-ordem de um menino perplexo que exerce a imaginação na tentativa de escapar da condição de fruto exilado do solo ancestral, de cidadão de segunda classe e do futuro tenebroso que o espera, já inscrito no presente do pai.

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