sexta-feira, 5 de maio de 2017

Análise do indivíduo moderno pelo crítico literário Magris no romance de Jacobsen - partes do enigma, fragmentos

Lukács, A alma e as formas.

"A perda de Deus - no dizer de Kierkegaard -, de um valor central, transforma o tempo em monotonia uniforme, despida de um fim, e transforma todos os sentimentos em melancolia, no luto indefinido pela perda de algo que nem ao menos se pode identificar. A melancolia nasce quando não se pode querer, isto é, tender a uma meta, porque não se sabe e não se quer saber o que se deseja."

"A temporalidade devora e dissipa a individualidade; o ateísmo é também a impossibilidade do que Kierkegaard chamava de "retomada", isto é, a revelação da vitória religiosa sobre o tempo, do resgate religioso da finitude."

"No maior de seus livros, A alma e as formas, o jovem Lukács identificou genialmente a vida moderna com o anseio pela vida e o amor com uma privação que o faz continuamente renascer: "O amor"- diz ele, citando Charles-Louis Philippe - "é tudo aquilo que não se tem".

"A arte de Jacobsen é um confronto com o indizível, jamais alcançado mas sempre perseguido pela palavra, que só quer roçá-lo sem lhe fazer violência. O indizível é a vida, a brisa entre as árvores e o azul da pervinca, a melodia que chama com um murmúrio ininterrupto. O indivíduo, urdido por essa melodia mas também disperso e dissipado por ela e por seu desenrolar no tempo, não pode de modo algum dominar o murmúrio vital. Ele vivencia seu próprio pensamento não como ato soberano proveniente de sua pessoa, mas como condensação iridescente e leve que brota obscuramente da vida, como uma bolha de ar ou um vapor de névoa que se elevam do rio. O indivíduo não se identifica com o pensamento, não o sente como seu, mas como estranho e impessoal, distinto do seu agir: cavalga no primeiro pensamento que se lhe apresenta e deixa-se levar por ele; o pensamento acompanha o olhar que se projeta ao longe e com ele se perde nas enseadas do fiorde, ou então cintila na mente e dissolve-se antes de tomar forma, lança-se sobre o ânimo como uma revoada de pássaros ou se retira de uma fronte sem perturbar a límpida profundidade de um olhar que espelha a vida.
     O pensamento confunde-se com os sentidos, é aliás uma atividade sensorial, impressão física na qual percepção e projeção acavalam-se como o pensamento que, no início da Recherche [Proust], eleva-se e dilata cautelosamente para testar as dimensões do quarto, enquanto o narrador jaz sobre a cama. Ao invés de ser o lugar que resolve em si as contradições do real, o pensamento é o fermento dessas contradições, o agente químico que dissolve a unidade do mundo e do vivido."

"Jacobsen é o poeta dessa cisão entre o eu e a vida, o eu e seu próprio pensamento, cisão que destina o eu à dispersão, à dor de existir - como escreve Woolf em As Ondas - disperso como neve esparramada nas montanhas. Como Maria Grubbe, também Niels Lhyne é um romance da paixão amorosa e sexual - ou melhor, da desilusão amorosa. A paixão perde seu grande estilo, a força de dar impulso e unidade à vida; Jacobsen é um analista do grande estilo que se desarticula em minúcias centrífugas, da paixão que se estilhaça na ambiguidade tortuosa, da queda das alturas do amor. Niels Lhyne experimenta a falência dos valores, a insuportável e estéril tensão da sensibilidade submetida aos estímulos de uma modernidade cada vez mais torturante. Sua história dispersa em fragmentos é a negação de toda formação orgânica e unitária da pessoa."

Claudio Magris, As moedas da vida, in Niels Lhyne, Jens-Peter Jacobsen.

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